sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sonhando um desejo

Há uma falta de mim,
Um excesso de mim,
Um alguma-coisa-que-não-sei-o-que.
E eu vivo sem saber.
Respiro sem perceber.
Eu ando e não vejo o amanhecer,
Não dá tempo, nem se eu correr.
Porque o sonho é intenso,
Não me deixa levantar
Nem a cabeça.
O mundo é imenso
E não consigo alcançar
Nem encaixar nenhuma peça
Do quebra-cabeça
Desse olhar pro nada
Que sai de mim,
Que sobra, que falta.
O dia não se resolve
Nem no fim.
Moça na Janela, de Salvador Dali

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O ralo



Vivia com um pavor em sua alma. Mal tomava banho, mal chegava perto da pia – do banheiro, da cozinha. Aquele monstro por onde escorria a água constituía-se como seu pesadelo atordoante, pior do que subir na roda gigante. Um redemoinho redesenhado para sua casa, para sua vida. Tudo se desfazia ali naquele instante final, a última gota de vida restante em qualquer ser se acabava naquele exato lugar. Se fechasse o olho, imaginaria o que estaria por vir e entraria em desespero. Se colocasse uma tampa, acreditava que a força da sucção seria mais forte que todas as forças que ele trazia consigo. De tudo no mundo que poderia assustá-lo, era o ralo seu maior medo, seu pior inimigo, porque o ralo seria seu fim inevitável.

Considerava o ralo o escoar de toda vida, de toda morte, de todo mundo. Se morto, enterrado, haveria algum ralo sob o solo que o levaria, aos pedaços, para o cumprimento do destino cruel. Se nadasse no mar, as águas formariam um grande redemoinho, forjariam um ralo para seu fim. Se voasse em um avião, o vento traria um grande furacão que o levaria dali. Era isso, era um fato, um destino. Se tomasse banho, aos poucos teria sua vida levada para o submundo do ralo, sua vida escorreria com a água em redemoinho que certamente se formaria. Recusava-se a dar um pouco de si a cada instante em que, ilusoriamente, pensava estar se limpando. Nessa circunstância, tomar banho não era se limpar. Lavar as mãos na pia não era se limpar. Era oferecer-se ao fim da vida, à escuridão do ralo. Esse medo ninguém lhe tirava.

O ralo era seu fim, o de todos nós, acreditava, amedrontado, amontoado no canto do banheiro, oposto ao canto do ralo, onde vagarosamente começou a cochilar, a se entregar a um sono sem fim. Ao passo em que dormia, sentia-se atraído, arrastado para o outro lado, como se fizesse uma viagem ao inferno, onde se recusava permanecer.

Num sono mais que profundo, ia sentindo a água que o afogava, deixando-o desesperado. Quando enfim conseguiu abrir os olhos e recobrar seus sentidos, ouvia vozes como que risos zombando de si. O ralo, repetia aos gritos desesperados, o ralo...

Quando abriu bem os olhos, deu-se conta de que estava em casa, debaixo do chuveiro, de bermuda, e que seus irmãos o vigiavam. Jurou para todos que era o fim que se aproximava, mas como o fim do mundo tão trágico só acontece em filmes, ninguém acreditou no que ele tinha vivenciado.


*Conto selecionado na fase municipal do Mapa Cultural Paulista 2015/2016

Suicídio

No frio do dia, numa chuva se perdia.
De todos os desejos, só tinha os que não podia.
Vivia a ingratidão dos tempos
sem se acostumar com tantos ventos.

Era muita direção soprando,
Sua vida parecia sempre afundando.
Eram encontros inesperados,
sonhos não vividos, tormentos desesperados.

Tinha um café para acordar
e uma piscada pra recomeçar,
mas surtava sem saber
como a vida deveria ser.

Estúpido, fingia ter razão.
Era cego, à frente não via nada, não.
Prostrava-se diante da cruz,
punha-se a rezar: a ti eu peço: me salve, Jesus.

Do sol só via o fogo que queimava.
Não recebia luz, só a dissipava.
Seu caminho era falho e era feio,
mas não se esforçava por um amor cheio.

Nem querendo mais sonhava,
e todo resto ele odiava.
Sem ter a quem recorrer,
resolveu então se perder.

Sem saber da vida o mistério,
deu-se um tiro. Cemitério.

*Poesia selecionada na fase municipal do Mapa Cultural Paulista 2015/2016

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