sábado, 26 de março de 2011

O prazer e a culpa

Vou comentar um texto do Contardo Calligaris que foi publicado esta semana na Folha de S. Paulo. Primeiramente, vamos esclarecer quem escreveu o texto abaixo: Contardo Calligaris é um psicanalista. A psicanálise é uma área da psicologia desenvolvida por Freud. Há outras teorias da psicologia além da psicanálise. A psicologia se apresenta como Ciência (tem um objeto de estudo, uma metodologia) embora haja algumas discussões sobre esse objeto, a 'alma', mas isso é outro assunto...
Como psicanalista, acredito que o Contardo queira não discutir se Deus existe ou não, mas ele lida com a questão do prazer e da culpa. Eu não entendo muito de psicanálise, mas vou tentar dizer o que sei sobre prazer (veja, prazer aqui não se refere necessariamente a sexo, mas ao prazer geral, como comer, fazer coisas das quais goste etc.) segundo a teoria de Freud: Todos nós, quando nascemos, buscamos o seio da mãe para nos alimentar, já sabemos o que temos que fazer: mamar. Essa ânsia, esse desejo de mamar e saciar a fome é o prazer inicial, o nosso primeiro prazer, o mamar. O segundo momento de prazer na nossa vida é quando conseguimos ter o controle do esfincter: quando conseguimos controlar nossa vontade de ir ao banheiro, podemos controlar essa necessidade de nos sentirmos aliviados. O mais importante é focarmos no prazer inicial, que é o mamar, o saciar a fome. Ao longo da vida, sempre vamos buscar alguma realização: é a nossa pulsão de vida. Assim que você conquistar algo que almeja, começa outra busca, e assim por diante. O dia em que você não mais desejar nada, será o dia em que você terá uma pulsão de morte, não mais vontade de viver, nenhum prazer mais para realizar.
Todos nós, segundo Freud, buscamos saciar o prazer inicial ao longo da vida, e colocamos nossas energias nessas atividades a que nos propomos fazer. Por outro lado, algumas pessoas buscam esse prazer original de uma forma 'descontrolada', se é que posso dizer assim: perdida, a pessoa come em excesso, se exercita em excesso, ou faz alguma coisa de forma 'incomum'. Inclusive aqueles que só enxergam a igreja, como os evangélicos cegos, ou mesmos católicos, ou mesmo os homens-bomba que matam em nome do Alá (mas no caso dos homens-bomba acho que é diferente, porque eles cresceram aprendendo que aquela é a única verdade, cegos, ignorantes e alienados). Mesmo o beijo, segundo a psicanálise, é uma tentativa de busca do prazer original. Essa busca de 'mamar na mãe' nos persegue para sempre, inconscientemente.
Como mais de 90% das pessoas do planeta não são atéias (acreditam em Deus, em algum Deus, em alguma entidade, força superior etc.), é inevitável tratar da culpa e do prazer sem falar em Deus.
Particularmente, não vejo a contradição que alguns possam enxergar no texto, se quiserem dizer que o autor fala que Deus existe mas que nega que ele possa agir em nossa vida : "No fim do primeiro milênio, cada vila europeia vivia no medo de bandos errantes. Quando eles se aproximavam, o povo se reunia na igrejinha e rezava. Isso não impedia nem saques nem estupros. O que pensar quando os bandidos iam embora? Deus não nos protege porque não existe? Deus existe, mas não dá a menor para a gente? Devia triunfar a versão que conciliava o desastre com a existência de Deus: o próprio Deus mandou os bandidos para nos punir de nossos pecados.". Veja que ele está descrevendo o que faziam as pessoas no primeiro milênio da era cristã: quando se aproximavam esses bandos errantes, as pessoas iam para a igreja e rezavam, e 'mesmo assim' não conseguiam evitar roubos e estupros. Conseqência: "se meus prazeres culpados são a causa dos males, (...) bastará modificar minha conduta de modo que minhas ofensas sejam perdoadas". O próprio autor deixa claro: o homem é que age e que muda sua conduta. A nós, que acreditamos em Deus, sabemos que Ele nos ilumina. Mas, em última instância, não podemos nos esquecer de que temos o Livre Arbítrio: a escolha final do que fazer sempre será nossa, agir ou ficar parado esperando... Por exemplo, se algo bom nos acontece, o que dizemos? "Graças a Deus". Ou não é assim que nos comportamos? E quando uma desgraça acontece, como uma tragédia natural? É importante refletirmos sobre isso, porque dizer que as desgraças acontecem com quem não reza e não crê me parece, isso sim, contraditário: por que tanta gente que reza e crê morre em situações terríveis, sofrem tragédias etc.? Não podemos oferecer respostas simplórias para assuntos tão complexos. Há inúmeras possibilidades sobre o que refletirmos, e essas muitas possibilidades me agradam de um tanto...
Segue o texto do Contardo:

CONTARDO CALLIGARIS (Folha de S. Paulo)
O prazer e a culpa

Os jovens são levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que ganham o amor dos adultos


ADMIREI A reação dos japoneses diante do desastre -terremoto, tsunami, contaminação nuclear. Nas declarações oficiais e nas palavras das vítimas, a catástrofe é apenas um acidente: pode haver responsáveis por falhas na prevenção, na segurança ou nos socorros, mas a catástrofe em si não tem sentido algum. Será que nós, ocidentais, seríamos capazes da mesma atitude? Não sei.
A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população europeia. Para que o horror não induzisse ninguém a pensar que o universo era sem sentido, duas reações populares: 1) perseguir judeus e bruxas, supostamente responsáveis pelo contágio, 2) juntar-se aos flagelantes, penitentes que erravam pelo continente se fustigando até o sangue.
Para o flagelante, a peste era um castigo pelos pecados do mundo; portanto, punir-se por eles talvez fosse o jeito de tornar a peste desnecessária.
Naqueles quatro séculos, a Europa se cobriu de igrejas que eram construídas como oferendas para que a epidemia se acalmasse; nelas, homens e mulheres faziam promessas, pedindo para serem poupados.
Ainda hoje, na calamidade e no medo, a promessa que acompanha o pedido feito a Deus ou aos santos sempre propõe uma renúncia: o pedinte se engaja a se privar de algo, do sexo ao chocolate. Funciona assim: 1) meu prazer e meu gozo são sempre culpados, 2) portanto, qualquer mal que me assole se explica como punição de minhas culpas, 3) a renúncia aos meus prazeres pode me redimir e estancar a punição.
Como chegamos a fazer esse estranho uso dos prazeres, ou melhor, da renúncia aos nossos prazeres? Três respostas, não excludentes (e insuficientes).
1) Bem ou mal, educar implica conter, impor frustrações e renúncias. Com isso, a aprovação dos educadores sempre parece proporcional à aceitação das renúncias pelos educandos. Ou seja, os jovens podem ser levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que eles ganham o amor dos adultos.
2) No fim do primeiro milênio, cada vila europeia vivia no medo de bandos errantes. Quando eles se aproximavam, o povo se reunia na igrejinha e rezava. Isso não impedia nem saques nem estupros. O que pensar quando os bandidos iam embora? Deus não nos protege porque não existe? Deus existe, mas não dá a menor para a gente? Devia triunfar a versão que conciliava o desastre com a existência de Deus: o próprio Deus mandou os bandidos para nos punir de nossos pecados.
3) Talvez seja menos angustiante viver num mundo que faz sentido do que num mundo que não teria sentido algum. Por exemplo, como é que você aguentaria o pensamento da morte futura sem o conforto da ideia de que ela está incluída numa ordem cósmica ou num plano divino?
Infelizmente, esse conforto tem um custo alto, pois o jeito mais fácil de garantir a existência de um sentido do mundo consiste em me atribuir a culpa por todos os males. Ou seja, minha culpa e meu esforço para me redimir "provam" que existe uma ordem (justamente, a que eu ofendia quando me entregava a meus prazeres).
Corolário: se meus prazeres culpados são a causa dos males, não preciso responder "adequadamente" às calamidades, bastará modificar minha conduta de modo que minhas ofensas sejam perdoadas.
Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a ilusão de agir de maneira eficaz: como o flagelante, posso esperar que minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez (ou além) de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência. Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será porque não me açoitei o suficiente.
Pois bem, não acredito que, em nossa cultura, esse bizarro uso dos prazeres e da culpa tenha mudado substancialmente nos últimos sete séculos. Continuamos fundamentalmente inimigos do nosso prazer.
Prova disso: há, hoje como no século 14, bandos errantes que denunciam nossos tempos "hedonistas" e nossa voracidade por prazeres e gozos. São os flagelantes verbais: criticam o prazer para fomentar a culpa. É o jeito (custoso) que eles acharam para dar sentido ao mundo.

Um comentário:

  1. “O que o Cristianismo criou? O medo da vida, o homem amedrontado, a esperança no nada, o desacreditar no homem e em suas forças; negou a vontade e a vida. Para o homem ser feliz, ele tem que se abdicar de seus pensamentos, de sua vontade, de seu querer e poder. O homem não pode ser feliz na terra; ele há que ser feliz noutro plano, noutra dimensão futura. Ora, o homem, então, está e sempre esteve condenado, purgando seus ‘pecados’, atado a si em penitência; o homem tem que pagar, tem que honrar seus débitos. Mas que débitos? E que culpa? De ser homem, de querer superar-se, de pensar, de ser ele e não precisar de forças superiores ou de controles invisíveis que o governem ou rejam a sua existência. Quão teatral é a vida! E no palco, todos somos atores ruins, pois o interesse não está aqui, está no depois. Todos estamos em teste, somos projetos; estamos sendo avaliados, perscrutados. Que delírio persecutório mais doentio! Que certeza patogênica! Quanta ditadura! Se não somos nada, qual o porquê do depois? Tornamo-nos algo desinteressante, algo não verdadeiro. É essa a negação da vida, a negação do homem; assim se adoece, se enlouquece o homem, e se diminuem as suas forças. O niilismo aqui impera. ‘Crê que não és nada, pois o paraíso virá e salvar-te-á.’ ”
    Um olhar mais atento na realidade atual pode nos mostrar que os prazeres e os desprazeres da vida mudaram, no entanto, a essência do sentimento de culpa, isto é, sua capacidade de mutilar a vida e a alegria do aqui-e-agora em detrimento de uma vida eterna, continuam vingando, fazendo vítimas e sepultando pessoas. Vemos isso com freqüência em nossa sociedade predominantemente religiosa: o desejo sexual reprimido retornando em forma de neuroses; a violência contra a mulher e as crianças; os sacrifícios de animais que lamentavelmente ainda são praticados como forma de redenção; a culpabilização do corpo e da vida material enquanto algozes da moral cristã, etc. – Além da terrível e brutal esterilização de pensamentos questionadores dos dogmas, implicando em autopunições danosas ao fiel que “ousar” se perguntar quanto à veracidade de seus valores.
    As formas que o sacrifício e a flagelação podem assumir irão variar de acordo com os graus de fé e submissão.

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